O comboio de carros com a bandeira negra da Al Qaeda veio em alta velocidade, e o gerente da modesta mercearia pensou que estava prestes a ser assaltado.
Mohamed Djitteye correu para fechar suas portas e se escondeu atrás do balcão. Ficou desconcertado quando um comandante da Al Qaeda gentilmente abriu a porta de vidro do estabelecimento e pediu um pote de mostarda. Depois, pediu o recibo.
Confuso e assustado, Djitteye não entendeu. Então, o jihadista repetiu o pedido. Por favor, poderia dar um recibo dos R$ 4 gastos?
Esta transação, no norte do Mali, mostra o que parece uma preocupação incomum para um grupo terrorista: a Al Qaeda é obcecada por documentar as mínimas despesas.
Em mais de 100 recibos deixados num prédio ocupado pela Al Qaeda no começo deste ano em Timbuktu, no Magreb islâmico, os extremistas registraram assiduamente seu fluxo de caixa, controlando despesas tão simples quanto a compra de uma lâmpada. As quantias, muitas vezes pequenas, eram cuidadosamente anotadas a lápis e canetas coloridas em pedaços de papel e post-its: cerca de R$ 4 por um sabão, R$ 19 por um pacote de macarrão, R$ 33 por supercola. Todos os documentos foram autenticados por especialistas e podem ser vistos neste endereço .
O sistema de contabilidade demonstrado nos documentos encontrados pela Associated Press é um espelho do que pesquisadores descobriram em outras partes do mundo onde a rede terrorista opera, incluindo o Afeganistão, a Somália e o Iraque. Os documentos do grupo terrorista ao redor do mundo também incluem programas de cursos corporativos, planilhas de salário, orçamentos de filantropia, currículos de emprego, conselhos de relações públicas e cartas do equivalente a um departamento de recursos humanos.
As evidências reunidas sugerem que, longe de ser uma organização fragmentada e improvisada, a Al Qaeda tenta se comportar como uma corporação multinacional, com o que se compara a uma política financeira consistente de uma empresa em suas diferentes filiais.
"Eles precisam organizar sua contabilidade devido à natureza do seu negócio", disse William McCants, bolsista da Brookings Institution e ex-conselheiro do departamento de contraterrorismo dos Estados Unidos. "Eles têm muito poucas formas de controlar seus agentes, de discipliná-los e de fazer com que cumpram o que devem fazer. Precisam gerir tudo como um negócio."
A imagem que surge do que é um dos maiores repositórios de documentos da Al Qaeda já tornados públicos é a de uma burocracia rígida, dotada de um presidente, um conselho de diretores e departamentos como os de recursos humanos e relações-públicas. Os especialistas dizem que cada filial do grupo terrorista repete a mesma estrutura corporativa, e que esse projeto estrito ajudou a Al Qaeda não apenas a durar como também a se expandir.
Entre os documentos mais reveladores estão os recibos, que oferecem uma visão granular de como os combatentes da Al Qaeda vivem no dia-a-dia, bem como de suas prioridades.
Um número imenso dos recibos é de alimentos, sugerindo uma dieta à base de macarrão com carne e molho de tomate, bem como grandes quantidades de leite em pó. Há 27 recibos de carne, 13 de tomates, 11 de leite, 11 de massa, sete de cebolas e muitos outros de chá, açúcar e mel.
Estão registrados o bolo de R$ 1,50 comido por um dos seus combatentes e o sabão de R$ 4 que outro usou para lavar as mãos. Essas quantias relativamente pequenas são anotadas com o mesmo cuidado que o adiantamento de R$ 12.700 pago a um comandante ou os R$ 800 usados para comprar 3.300 cargas de munição.
O cuidado com as despesas faz parte do DNA da Al Qaeda, segundo especialistas que incluem agentes do FBI designados para investigar o grupo logo após sua fundação. O hábito vem de há quase quatro décadas, quando um jovem Osama Bin Laden entrou na universidade Rei Abdul Aziz, na Arábia Saudita, para estudar economia em 1976, e de lá saiu para dirigir parte da milionária empreiteira de seu pai.
Depois de ser exilado no Sudão, em 1992, Bin Laden fundou o que se tornaria o maior conglomerado do mundo. Suas empresas e numerosas subsidiárias investiram em tudo, da importação de caminhões à exportação de papoula, milho branco e melancias. Desde o início, Bin Laden era obcecado em aplicar técnicas de administração corporativa aos seus mais de 500 empregados, segundo o especialista em Al Qaeda Lawrence Wright.
Os funcionários precisavam apresentar requisições em três vias até para as menores compras - a mesma exigência, diz Wright, que Bin Laden impôs mais tarde aos primeiros recrutas da Al Qaeda.
No Afeganistão, registros contábeis detalhados encontrados num acampamento da Al Qaeda em 2001 incluíam listas de salários, documentos de cada combatente, formulários de recrutamento de emprego que perguntavam pelo grau de instrução e habilidades linguísticas, bem como vários cadernos de despesas. No Iraque, as forças dos EUA encontraram diversas planilhas de Excel que detalhavam os salários dos combatentes.
"As pessoas acham que isso é anotado em qualquer pedaço de papel. Não é", diz Dan Coleman, ex-agente especial do FBI que cuidou do caso Bin Laden entre 1996 e 2004.
Um dos primeiros ataques a uma casamata da Al Qaeda foi liderado por Coleman em 1997. Entre as dezenas de recibos que encontrou no local, no Quênia, estavam pilhas de recibos de combustível, acumuladas durante oito anos.
RELATÓRIOS DE DESPESAS COM TERRORISMO
Este sistema detalhado de contabilidade também permite controlar os movimentos dos próprios terroristas da rede, que muitas vezes operam de maneira remota.
A maioria dos recibos encontrados num chão de cimento num prédio no Timbuktu é escrita à mão, em notas de post-it, em papel pautado ou em envelopes, como se os agentes de campo usassem quaisquer superfícies de escrita que pudessem encontrar. Outros são digitados, às vezes repetindo os mesmos ítens, no que pode servir como relatórios formais para os escalões superiores. Numa carta encontrada entre os documentos, gerentes cobram um terrorista por não ter prestado contas suas no prazo.
Em mercados informais a céu aberto, como os do Timbuktu, os vendedores não têm notas fiscais para entregar. Então, dizem os comerciantes, os membros da Al Qaeda vêm em duplas. Um para negociar a compra, o outro para anotar os preços numa caderneta. A prática se reflete no fato de que quase todos os recibos estão escritos em árabe, uma língua escrita por poucos moradores da região.
Os combatentes perguntavam o preço e depois escreviam em seus Bloc Notes, uma marca de caderneta vendida no local, segundo o farmacêutico Ibrahim Djitteye.
"No começo eu fiquei surpreso", ele disse. "Mas cheguei à conclusão de que eles têm uma missão muito específica... e, nesses casos, é preciso fazer relatórios."
A natureza corporativa da organização também aparece nos tipos de atividades pelos quais eles pagam.
Por exemplo, dois recibos, um no valor de R$ 8 mil e outro no valor de R$ 14 mil, aparecem como pagamento por "workshops", outro conceito tomado do mundo dos negócios. Um folheto encontrado em outro prédio ocupado por seus combatentes confirma que a Al Qaeda promove o equivalente a encontros de treinamento corporativo. Toda manhã, exercícios das 5h às 6h30; aula sobre como usar um GPS das 10h às 10h30; treinamento de tiro das 10h30 ao meio-dia; à tarde, lições sobre como pregar a outros muçulmanos, sobre nacionalismo e sobre democracia.
São relativamente poucos os recibos de pagamentos por combatentes e armas. Uma unidade apresentou um pedido muito educado de recursos, com o título "A lista dos nomes dos mujahedins que pedem roupas e botas para se proteger do frio".
Muitos mais lidam com os aspectos do dia-a-dia da administração estatal, como a tarefa de manter a luz ligada. A Al Qaeda do Magreb Islâmico invadiu o Timbuktu em abril de 2012, e tomou conta de seus serviços públicos estatais, pagando para receber combustíveis vindos da Argélia. Um recibo mostra que eles pagaram quase R$ 9 mil por 20 barris de diesel para a estação de energia da cidade.
Também há um adiantamento para a prisão e um orçamento detalhado do Tribunal Islâmico, onde os juízes recebiam R$ 5 por dia para ouvir casos.
Além do dia-a-dia do governo, fica claro que os combatentes tentavam ativamente conquistar a população. Eles separam dinheiro para a caridade: R$ 9 para comprar remédios "para um xiita com o filho doente", R$ 240 para contribuir com a cerimônia de casamento de um homem. E eles reembolsavam prejuízos dos moradores, como R$ 120 para consertar uma casa, com uma nota informando que o imóvel "foi atingido por carros de mujahedins".
E fica claro que os combatentes passavam boa parte do tempo fazendo proselitismo, com relatórios de despesas com viagens a aldeias distantes para pregar sua visão extrema do Islã. Um recibo fala abertamente em gastos de R$ 480 com uma "viagem para espalhar propaganda".
Embora não seja abertamente explicado, os razoáveis recibos de conserto de carros sugerem missões regulares no deserto. Os muitos recibos de troca de óleo, compra de baterias, filtros e autopeças indicam o terreno difícil onde circulam os Land Cruisers do grupo.
Finalmente, os nomes nos recibos revelam que a maioria dos combatentes na folha de pagamento do grupo eram estrangeiros. Há um adiantamento de R$ 2.400 para um homem identificado como "Talhat Líbio". Outro é endereçado a "Tarek Argelino".
Os nomes também confirmam que os mais altos líderes da Al Qaeda no Magreb Islâmico estavam baseados no Timbuktu. Entre eles está Abou Zeid, provavelmente o mais temido comandante local da Al Qaeda, que orquestrou os sequestros de dezenas de ocidentais até sua morte no primeiro semestre.
"Em nome de Alá misericordioso", diz um pedido de recursos com data de 29 de dezembro de 2012 e dirigido a Abou Zeid, "escrevemos para lhe informar de que precisamos de foguetes para nosso acampamento - são necessários um total de 4. Que Deus o proteja."
A extensão da documentação encontrada aqui e nos outros teatros onde opera a Al Qaeda não significa, porém, que o grupo terrorista dirija uma máquina bem azeitada, alerta Jason Burke, autor do livro Al Qaeda."
"A burocracia, como sabemos, dá aos altos gerentes a ilusão de que podem controlar seus subordinados mais distantes," disse Burke. "Mas essa influência é muito, muito menor do que eles gostariam."
As práticas contábeis da Al Qaeda deixaram uma forte impressão em ao menos uma pessoa no Timbuktu: Djitteye, o gerente da loja de conveniência.
O comandante que veio comprar mostarda era Nabil Alqama, o líder da Al Qaeda no "Comando Sul" do Magreb Islâmico. Ele virou freguês da loja. Um dia, ele pediu que o vendeiro mandasse imprimir um talão de notas para poder ter recibos com uma aparência mais oficial.
Djitteye cumpriu o pedido.
O talonário verde e bem diagramado está sob sua caixa registradora. Atualmente, sempre que os clientes entram, ele pergunta se querem um recibo.
Ninguém quer.
RUKMINI CALLIMACHI
DA ASSOCIATED PRESS, EM TIMBUKTU (MALI)